terça-feira, junho 14, 2005

3.1 em busca de uma teoria

Devido à tradição e natureza das abordagens científicas no campo da arquitetura e do urbanismo, a tarefa de encarar o conjunto é de todo penosa. A ciência, de uma maneira geral, especialmente as ciências exatas e da natureza, têm como tradição encarar os fenômenos de maneira isolada, estabelecendo recortes sempre muito fechados na abordagem dos problemas. É o que Hegel chama de abstração[1] em seu elegante ensaio “Quem pensa abstratamente?” Onde responde à pergunta: “o homem sem instrução, não o instruído”, citando o exemplo do assassino, que quando do seu julgamento é visto apenas como tal, sendo desconsiderada sua história, geralmente recheada de problemas, traumas, sofrimento, dúvidas e incompreensão, causadores prováveis da desordem de caráter e amargura que o caracterizam. Hegel conclui que: “pensar abstratamente significa isto: ver no assassino somente o fato abstrato que ele é um assassino e através desta simples qualidade anular [vertilgen] toda essência humana ainda remanescente nele”.[2] O pensamento abstrato imperou durante muito tempo, o acordo tácito entre a ciência e a religião, onde limites eram estabelecidos uma em relação à outra, sendo a fusão algo impensável caracteriza a relação tradicional entre as duas formas de compreensão do mundo. O cientista abordava as questões naturais (estudando os fragmentos do todo, através do método analítico), e o teólogo, as sobrenaturais (abordando os fenômenos através do método da exploração: meditação, intuição, fé, sentimento e revelação). (Peck, 1992).
Mas existem mudanças a este respeito, foi dado início à integração entre ciência e religião, a ciência está ávida a descobrir os mistérios do mundo, e, aos poucos, começam a adotar mais de uma abordagem no estudo dos problemas, os físicos percebem a luz como partícula e onda, simultaneamente; arqueólogos, pesquisadores e historiadores se envolvem em pesquisas sobre personagens e eventos bíblicos, como a verificação da autenticidade do Santo Sudário, a veracidade da história do dilúvio e da arca de Noé, a comprovação da existência do Rei Davi, do sacerdote Caifás e de Pôncio Pilatos. Ainda que muitos eventos não possam ser cientificamente comprovados, como a Ressurreição de Cristo, e neste sentido os cientistas continuam embasando seus relatos em dados concretos, não se pronunciando, portanto, em questões desta natureza, o interesse para um melhor entendimento das questões inerentes à história da humanidade é cada vez mais exacerbado em ambos, cientistas e religiosos, representando um passo fundamental para a compreensão e elucidação de fatos e mitos
[3]. Algo impensável nos tempos do pobre Galileu [4].
Se ciência e religião não são mais tão incompatíveis, o que se espera no campo da arquitetura e o urbanismo é uma busca cada vez maior em se trabalhar com uma grande multiplicidade de modelos, realizar parcerias multidisciplinares de forma a caminhar para um entendimento preciso dos fenômenos.
Desde a construção dos templos romanos, buscava-se, através de estudos relacionados à proporção, simetria e ilusão de ótica, estabelecer diretrizes que resultaram em uma teoria da projetação que efetivasse os conceitos de magnitude e beleza desejados numa obra como um templo. Eram os valores sociais em vigor.
O advento do Movimento Moderno não tinha intentos diferentes. Impulsionados pelas novas exigências sociais, decorrentes da (r)evolução industrial, o Movimento tinha a nobre intenção de promover a padronização do elemento arquitetônico, de forma que o tornasse acessível a todos. Le Corbusier estabeleceu critérios a serem seguidos para o exercício da “boa arquitetura”. As demandas sociais pertinentes eram resolver o problema da habitação e favorecer o trânsito de automóveis que gradativamente aumentava. A habitação foi concebida com o título high tech de “máquina de morar”, otimizando ao máximo os espaços considerando as novas facilidades da vida moderna proporcionada pelos eletrodomésticos. Qualquer referência histórico-estilística era de todo rechaçada. Linhas ortogonais e formas puras eram o ideal. No campo do urbanismo, a necessidade de abrir vias amplas, de dar espaço ao automóvel, parecia salutar frente às necessidades cada dia maiores de agilizar o transporte. A rua então, assumiu outro conceito: “uma máquina para o tráfego”, pessoas circulando não eram previstas, atrapalhavam, tudo tinha que ser realizado num local pré-determinado, lugar para pessoas, para o tráfego, habitação, trabalho, ricos e pobres. As altas torres eram “integradas” através de amplos espaços de circulação e grama, geralmente vazios. Este rigor na concepção do objeto arquitetônico recebeu uma de suas primeiras e mais contundentes críticas através do livro Complejidad y Contradicción en la arquitectura, de Robert Venturi, onde ele destaca, na qualidade de arquiteto projetista, a importância do papel da história como suporte e referência ao produto arquitetônico.
Com um raio de abrangência ainda mais amplo, o denso relato da vida em Nova York descrito pela jornalista Jane Jacobs em seu célebre livro The Death and Life of Great Americans Cities, mostra-se inelutável como crítica à cidade que o modernismo pretendia criar, a limpeza física e o zoneamento preciso, a seu ver, criavam sociedades mortas, a “desordem” humana, rica e complexa, não pode ser reduzida, ou desconsiderada. A diversidade, plenitude e riqueza da vida nas ruas são meticulosamente descritas através de sua visão do cotidiano do bairro em que morava, através desta intensa observação, chegou a uma conclusão do que seria a rua ideal: uma rua cheia de estranhos, de classes sociais diferentes, crenças diferentes, funções diferentes, o comércio junto com a habitação, diversidade de grupos étnicos e de estilos de vida, além da riqueza inerente à própria natureza, proporciona uma condição de vigilância ideal, uma genuína prevenção contra a criminalidade. E era tudo isso que o Movimento Moderno desejava matar, segundo as palavras de Le Corbusier: “Precisamos matar a rua!” e “Cafés e pontos de recreação deixarão de ser os fungos que sugam a pavimentação de Paris”.
A fragilidade do radical posicionamento modernista mostrou ser necessária a adoção de modelos diferentes. Kevin Lynch busca explicar e analisar a cidade através da semiótica, gerando inúmeros estudos nesta linha. Gordon Cullen enfatiza a relação entre escalas, o olhar, a continuidade dos espaços, a disposição dos elementos. Carlos Nelson pensa em viabilidades, as formas de apropriação do espaço de uso coletivo.
Estudos contemporâneos e teoricamente mais ousados, como a tentativa de estabelecer uma metodologia, ou um ensaio de metodologia para intervenção em áreas históricas, como o demonstrado no livro Construir en lo construido: la arquitectura como modificacíon, de Francisco de Gracia. O livro é dividido em três partes, onde no momento inicial é feita uma rica abordagem analítica, considerando a arquitetura como algo inclusivo, questões extraordinárias são levantadas, no entanto, na parte final do livro, denominada “la acción modificadora”, são destacadas atitudes frente ao contexto, que se apresentam, ao todo, formalistas, a riqueza de sua análise inicial não parece ser incorporada às atitudes intervencionistas, e a história é enfatizada ao extremo.
O que se tem percebido em relação a estas produções teóricas esses ângulos de visão sobre o objeto arquitetônico é que, em maior ou menor grau, cada uma delas tem reduzido ou “abstraído” os problemas da arquitetura e do urbanismo, cada qual busca, de acordo com suas convicções, enfatizar um ou outro ponto inerente ao objeto arquitetônico. Alguns pontos fundamentais passam a ser avaliados de maneira inadequada, não há clareza em relação ao que deve ser considerado prioritário. Todas têm em comum o caráter prescritivo. O que se pretende nesta seção em busca de uma teoria é fazer uma descrição das principais teorias e conceitos que tem sido utilizados ao longo do tempo para estudar e/ou conceber o objeto arquitetônico e urbanístico, ou melhor, como a ciência de uma maneira geral, nas suas segmentações humanas e exatas tem abordado e colaborado para a compreensão dos problemas estudados. No caso em particular do edifício como objeto arquitetônico, ferramentas como estatísticas e cálculos matemáticos eram, até o surgimento do método da sintaxe espacial, algo inexplorado.
Na tentativa de preencher essa lacuna histórica, surge a Teoria da Sintaxe Espacial, que não pretende discutir arquitetura em termos de estilos visuais, de aparência, de variáveis físicas, mas discute arquitetura em termos daquilo que ela realmente é: uma questão de espaço, o espaço e a vida social.
Bill Hillier, o precursor da Sintaxe, propõe uma nova teoria da relação sociedade/espaço, um método de investigação desta relação. Este método constitui de uma teoria descritiva do espaço, que permite estabelecer padrões espaciais, sistemas de relações espaciais, através de variáveis como: permeabilidade (acessos e movimentos); inteligibilidade (clareza de apreensão do espaço); segregação e integração (condições topológicas de proximidade em relação a um conjunto). Acredita-se que padrões espaciais contêm informações sociais, denota identidades culturais, o ordenamento dos espaços nos edifícios equivalem ao ordenamento de relações entre pessoas. As relações pessoais, a cultura e o comportamento das pessoas são materializadas no ordenamento dos espaços (Hillier, 1984).
O edifício pode ser entendido a partir de seus padrões espaciais, que são compreendidos a partir da determinação de suas propriedades, da descrição da regularidade de determinados fenômenos, com suas peculiaridades e condições. Diz como o edifício é, tenta compreender os valores das estruturas sociais. A descrição dos fenômenos é feita a partir da observância de regularidades. A partir do entendimento da realidade pode-se chegar a um prognóstico, ou levantar hipóteses. A teoria analítica permite conhecer a “verdade” do lugar, possibilitando guiar soluções e interpretações mais adequadas e menos tendenciosas (Hillier, 1984).
As análises se convertem em números, gráficos, o suporte da estatística e da matemática, no sentido de quantificar as relações espaciais é algo incomum, mas esta contribuição tem se mostrado extremamente útil para esclarecer cientificamente problemas antes relegados a uma questão de opinião.
A seguir serão abordados alguns pontos que caracterizam a teoria, como sua natureza, as formas de representação do espaço e os conceitos.
[1] Abstração em filosofia significa: “a operação mediante a qual alguma coisa é escolhida como objeto de percepção, atenção, observação, pesquisa, estudo, etc. ..., e isolada de outras coisas com que está em uma relação qualquer. A abstração tem dois aspectos: primeiro, o isolar a coisa pré-escolhida das demais com que está relacionada [o abstrair de]; segundo, o assumir como objeto específico de consideração o que foi então isolado [abstração seletiva ou pré-cisão]”. Dicionário de Filosofia. Nicola Abbagnano. 2a edição. Mestre Jou. São Paulo. p.4.
[2] Georg. W. F. Hegel. Quem pensa abstratamente? Síntese Nova Fase. Vol. 22. N° 69. Abril-junho 1995. p. 237.
[3] Isto é claramente verificado observando as palavras do porta-voz da arquidiocese de Saint Louis, no Estados Unidos, Steve Mamanella, sobre recente pesquisa israelense referente a fortes indícios de real autenticidade do Santo Sudário: “Esperamos que as últimas descobertas sirvam para solidificar nossas crenças.”
[4] Galileu, físico e astrônomo italiano (Pisa, 1564 - Arcetri, 1642). Defensor do sistema do mundo composto por Copérnico, astrônomo polonês (Torum, 1473 - Frauenburg, 1543) que demonstrou os dois movimentos dos planetas: sobre si mesmos e em torno do sol, o qual a corte de Roma denunciou como herético. Galileu foi intimado a não mais professá-lo, e a isso aparentemente se submeteu. Mas, publicou em 1632 todas as provas da verdade do sistema. Em 1633 teve de abjurar suas crenças perante a Inquisição. Fonte: Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse Seleções. Editora Larousse do Brasil Ltda. Rio de Janeiro. 1978. Vol. 2. p. 1134 e 1232.